8.31.2008

"Into the wild" parte III. El Valle de las Rocas (Bolivia)

DO DIA 18 AO DIA 28, UYUNI.

Por entre dias solarengos à conversa com o Antonio Queirós nas esplanadas da praça principal, noites gélidas no quarto do Hotel Avenida cuja canalização congelada deixava fios de gelo pendurados nas torneiras, ou entretidos em passeios pelo cemitério de comboios ou mercados da cidade, o tempo foi passando sem que nos déssemos conta. Estivemos 10 dias nesta cidade campesina, fria e desolada do altiplano boliviano, talvez porque os nossos corpos estivessem a implorar por descanso, ou talvez pelas incertezas dos dias que se anteviam para a próxima etapa.
Visitem o site do Antonio que viaja pelo continente americano por tempo ou destino indeterminado: Aqui.

Aqui passamos a noite de São João na companhia de novos amigos, celebrações cujas semelhanças com o nosso São João se limitam ás fogueiras de rua. Passamos uma noite animada mantendo o corpo e os ânimos quentes na noite fria que se sentia com uns shots de “singani”, aguardente local.


Aqui no altiplano o São João assinala a noite mais fria do ano, as temperaturas durante a noite podem atingir os 30 graus negativos. Era-me difícil imaginar que esta cidade em tempos passados foi um local prospero cheio de vida e com uma grande população de aventureiros internacionais e caçadores de fortunas em busca de minerais, uma época bem retratada no filme boliviano “Los Andes no creen em Dios”.

Apesar das ganâncias humanas não terem esgotado os subsolos da região, estes são agora explorados por multinacionais estrangeiras e a população de Uyuni virou-se para uma nova riqueza: o turismo. Dezenas de agencias de turismo oferecem os mais diversos pacotes de aventura através de passeios na maior e mais alta salina do planeta ou pelas lagoas vermelhas povoadas por flamingos raros do vasto e desolado sudoeste do altiplano Boliviano, uma região que iríamos explorar na nossa próxima etapa.
Estava na altura de partir, novas aventuras e dificuldades nos aguardavam.

DIA 29
De Uyuni a (antes de) Ramaditas.
48.8km
Altitude máxima 3695m
Altitude de acampamento 3675m




Finalmente de novo “on the road”!
A estrada entre Uyuni e San Cristobal esta em surpreendentemente boas condições e é completamente plana e sem trafego. A paisagem é muito monótona e desinteressante. Acampamos na pampa ventosa onde passamos uma noite muito fria com 15 graus negativos registados.

DIA 30
De (antes de) Ramaditas até San Cristobal.
48.3km
Altitude máxima 3821m
Altitude de acampamento 3790m


Hoje de manhã estava tanto frio que não conseguimos sair antes das 11.30 horas. Mais um dia monótono e desinteressante. Começo a questionar se vale a pena esta etapa com tanto frio, a pedalar e, provavelmente empurrar, por mais estradas arenosas. Chegamos á aldeia de San Cristobal, decidimos não acampar e procurar um hotel. San Cristobal é uma aldeia que foi trasladada do seu local original para dar lugar a uma mina de prata e zinco, da qual quase toda a população subsiste. A estrada ao chegar á aldeia estava em tão boas condições que quase que parecia alcatroada, mais um dos vários projectos que a empresa canadiana que explora a mina fez na região.



DIA 31
De San Cristobal até Villa Alota.
60.5km
Altitude máxima 3895m
Altitude de acampamento 3840m


Tomamos o pequeno almoço de sandes de mortadela e café no mercado municipal e seguimos caminho. 15 km depois chegamos á aldeia de Kulpina K, uma das quatro aldeias na região escolhidas e intituladas pela mineira Canadense San Cristobal como “pueblos autênticos”. Esta empresa investiu em projectos de turismo rural sustentado com o objectivo de criar estruturas economicas paras as povoações quando a mineira deixar de funcionar dentro de 17 anos e como forma de compensar a população local pela presença da mina. Sem duvida um projecto bastante interessante e único na Bolívia, pais que sempre teve forte tradição mineira e nem sempre explorada da melhor forma. Na altura colonial as minas bolivianas eram o principal alimento da coroa espanhola e isso ás custas de milhares de vidas perdidas dentro de minas precárias.

Aldeia de Kulpina K

Na pequena praça da aldeia falamos com um jovem que nos conta um pouco acerca da maior mina de prata e zinco da America do Sul e do maior projecto mineiro da Bolívia das ultimas décadas. Quando começaram as obras a mina dava trabalho a 6 mil pessoas, agora existem cerca de 1500 trabalhadores. “Os Canadianos trouxeram muitas maquinas modernas e já não necessitam de tanta mão de obra”, contou-nos. A maquinaria pesada revolve 100 mil toneladas de terra todos os dias, o José trabalha com uma delas durante 16 dias consecutivos, seguidos por uma semana de folga.

Á saída de Kulpina K uma subida curta mas acentuada leva-nos a outro vale desolado. Pedalamos toda a tarde nesta pampa ventosa chegando a Villa Alota ao entardecer. Mais um dia de paisagens monótonas com vento de frente que não nos deixava avançar a bom ritmo, mas mesmo assim em 3 dias tínhamos feito 150 km, algo inesperado nesta parte do altiplano onde esperávamos encontrar das piores estradas da etapa. A paisagem monótona deixava muito a desejar e mais uma vez questiono se valia a pena esta rota recomendada por outros viajantes.
Hoje decidimos alterar a rota e subir o vulcão Uturunco primeiro e seguir depois para a Laguna Colorada.

Villa Alota

DIA 32
DE Villa Alota ao Valle de las Rocas.
22.7km
Altitude máxima 4117m
Altitude de acampamento 4076m


Bom, parece que depois de 3 dias de monotonia, o sudoeste do altiplano boliviano começou a revelar a sua beleza. A 2.6 km de Vila Alota um sinal velho e gasto pelo tempo assinalava a estrada que nos levaria a Quentena Chico. Terminavam aqui as estradas mantidas pela mineira San Cristobal e começavam, mais uma vez, as nossas estradas “pesadelo”. Depois de uma inicial encruzilhada de caminhos e rios a estrada começa a subir a um planalto acima dos 4000m e entramos no Valle de las Rocas. Pedalávamos directamente para sul e o vento forte de noroeste ajudava as pedaladas, mas o progresso foi lento devido á areia e lavadouros na estrada.






Acampamos numa “floresta” de rochas com formações fantásticas criadas pela erosão do vento que as golpeia incessantemente. Procuramos um lugar abrigado do forte vento (que nos iria acompanhar ao longo das próximas semanas) montamos acampamento e cozinhamos ao lume. Mais uma noite muito fria de 17 graus negativos.



DIA 33
Do Valle de las Rocas a Villa Mar.
31.1km
Altitude máxima 4083m
Altitude de acampamento 3998m


Rodeados por esta paisagem fantástica e pouco comum, tivemos um amanhecer mais preguiçoso do habitual. Foi sem duvida um dos lugares mais bonitos onde havíamos acampado.





Mas não andavamos sós por estas bandas. Dezenas de jipes com turistas percorrem esta parte do altiplano e, para alem de levantarem uma enorme poeira com a sua passagem retiram de certa forma a magia de pedalar por esta parte tão inóspita do planeta. Cozinhamos o pequeno almoço ao lume e saímos do acampamento ao meio dia, com a chegada do primeiro jipe.


Pedalamos apenas 4 km e aproximamo-nos de uma enorme formação rochosa que se estende por toda a encosta Oeste do vale. Deixamos as burras e fomos dar um passeio de um par de horas. As formações rochosas trouxeram-me à memória Wadi Rum na Jordânia pela sua similaridade.

Chegamos a Villa Mar ao final da tarde, um Oasis humano no meio desta vasta paisagem selvagem. Uma pequena aldeia, com 900 habitantes de etnia quéchua, construída em blocos de cimento por pintar, atravessada por um pequeno rio congelado e protegida dos ventos do altiplano por uma parede natural de rocha, parte das formações rochosas que temos vindo a observar desde Villa Alota.
Alojamo-nos numa pequena e rústica hospedagem onde estava também alojado um tour cujo guia nos deu informação valiosa em relação á nossa rota.
Chegada a Villa Mar

Por do sol em Vila Mar


Algo que nos intrigou nesta pequena comunidade Andina era a origem do seu nome Villa Mar. Estávamos rodeados por desertos de rocha vulcânica e pampa arenosa a 4000m de altitude e a centenas de quilômetros da costa. Originalmente chamada de Mallku, o nome de Villa Mar provem da perda do litoral Boliviano na guerra do pacifico com o Chile e Peru que afectou os sentimentos da comunidade e que lhe mudaram o nome em honra do mar perdido. Esse sentimento ainda esta bem vivo e presente nos dias de hoje.

DIA 34
De Villa Mar a algures na pampa
33.8km
Altitude máxima 4129m
Altitude de acampamento 4044m


A simpática dona da hospedagem desenha na areia do pátio a nossa prevista rota até Quentena Chico. No seu desenho havia um desvio e uma ponte, mas como viemos a saber (alias, já estamos habituados) havia uma ponte e, não um, mas vários desvios! Seguir sempre o caminho mais demarcado pelas rodadas dos carros é algo que já aprendemos nas nossas pedaladas pelo altiplano, isso tornou-se na nossa regra numero um de orientação. No altiplano grande parte dos caminhos não são obras publicas senão caminhos construídos pelas sucessivas rodadas dos carros de quem sabe, de quem conhece. Mapas são praticamente inúteis.

Pouco depois, a ponte desenhada na areia pela senhora aparece diante dos nossos olhos, a paisagem agora é fabulosa e não há tours! A estrada aproxima-se do cerro Zoniquera com o seu pico rochoso e sem neve de 6000m e começa o sobe e desce por um caminho sinuoso e arenoso. Procuramos abrigo do forte vento por detrás de umas rochas e montamos acampamento.


Depois do jantar observamos os mapas e consideramos pela primeira vez sair da Bolívia e do altiplano pela laguna verde e entrar no Chile por San Pedro de Atacama. Estávamos a ficar fartos destas estradas horríveis, ventos frios e ansiosos por uma alimentação mais adequada... E vinho chileno!
Depois de San Pedro seguiríamos para a Argentina através do Paso de Jama, quebrada de Humahuaca e regressaríamos á Bolívia por Villazon. Um loop com 600 km mais do que inicialmente planeado, mas por estradas alcatroadas!
Acampamento de hoje:

DIA 35
De algures ás margens do rio Lipez Grande
32.1km
Altitude máxima 4393m
Altitude de acampamento 4170m


Mais uma noite fria com o termómetro a descer aos 12 graus negativos. Depois das desastrosas estradas são as noites que eu mais temo. Assim que o sol se poe no horizonte iniciamos outra viagem. A viagem ás noites geladas do altiplano boliviano onde somos obrigados a cozinhar dentro da tenda e tomar refugio dentro dos sacos de cama instantes depois de comer. O simples acto de fazer as necessidades fisiológicas é um verdadeiro sacrifício. Como consolo os fantásticos céus estrelados e a companhia da Joana. Teria sido muito difícil enfrentar a dureza do altiplano sozinho.

Continuamos viagem por um caminho sinuoso e bastante arenoso que com a subida a um cole de 4393 metros se foi tornado num caminho pedregoso. No topo do cole a recompensa: vistas do vulcão Uturunco em grande plano.

No downhill um pequeno riacho semi-congelado para atravessar. Mais um, das dezenas de rios que atravessamos nas ultimas semanas, pontes são uma raridade. A Joana atravessa primeiro e num lapso de desequilíbrio, fica com a bicicleta pendurada nas mãos quase a cair na água. Numa reacção espontânea , saio da minha bicicleta para a tentar ajudar, mas desiquilibro-me e caio deixando cair também a minha bicicleta no chão. A queda foi tal que arranhei o peito, as mãos (um dedo inchou de imediato tipo ET), e o queixo bateu com toda a forca no solo rochoso. O que inicialmente aparentava ser apenas uns arranhoes revelou ser um pouco mais grave. Seguimos viagem.
A Joana diz-me que tenho sangue a escorrer pela barba.

Paramos para o nosso almoço volante (apenas bolachas de água e sal com doce, não tínhamos fome porque passamos todo o caminho a mascar coca). A Joana desinfecta as feridas e diz-me que tenho o queixo aberto até ao osso. Provavelmente terei que levar pontos, mas onde? O próximo hospital deve ser em Uyuni ou Potosi, a vários dias de viagem, ou então em San Pedro de Atacama no Chile, provavelmente também a vários dias de viagem. Sigo de queixo aberto, mas desinfectado, em Quetena Chico reavaliaria a situação.

O downhill levou-nos a outro vale e aos 4200 metros de altitude. Neste vale estreito situa-se o “sol de La manana”, a entrada para o parque natural Eduardo Avaroa”, onde pagamos 30 bolivianos de entrada cada um. O guarda do parque indica-nos que há um medico em Quentena Chico mas que ainda são 2 horas de viagem. Tínhamos apenas 1.30 horas de luz e o caminho piora bastante.


O nosso progresso é muito lento, sentia-mo-nos fracos por não ter almoçado. Mais uma forte e tortuosa subida e chegamos a outro vale e mais um rio para atravessar. O sol já se tinha posto por detrás das montanhas e começava a escurecer. Momentos de decisão, atravessar as águas geladas e continuar de noite, ou acampar?

Não sabíamos a distancia que nos separava de Quentena Chico e continuar pela noite dentro com os pés gelados poderia ter consequências que comprometer iam a nossa ascensão ao vulcão Uturunco. Afinal de contas era para subir a estrada mais alta do mundo que viajávamos há vários dias por estas estradas desastrosas. Decidimos acampar. Apesar de ter o corpo dorido, este não me doía, talvez fosse devido ao frio, talvez fosse devido ao cansaço, talvez os dois - não sei, mas adormeço num sono profundo.

DIA 36
Das margens do rio Lipez Grande a Quentena Chico
5.7km
Altitude máxima 4170m
Altitude de acampamento 4150m


Sabíamos que tínhamos pela frente um dia curto de ciclismo e para aproveitar a altura mais quente do dia para atravessar o rio, ficamos no acampamento até tarde a absorver a beleza da paisagem que nos rodeava. Estava um dia lindo, cheio de sol, sem vento e o silencio era absoluto. Já eram 3 da tarde quando atravessamos o rio e pedalamos os restantes 5 km até Quentena Chico.




Quentena Chico foi uma enorme decepção. Esperávamos que fosse pelo menos do tamanho de Villa Mar uma vez que era a aldeia mais importante nesta parte do sudoeste do altiplano, mas deparamo-nos com um pequeno aglomerado de casas de adobe abrigadas por uma montanha com uma pequena e poeirenta praça, uma escola, um campo militar e varias lojas de prateleiras quase vazias.

A única loja que parecia estar mais recheada estava fechada, a dona estava em Potosi. O único medico da aldeia também tinha viajado a essa cidade mineira. Alojamo-nos na simples hospedagem Condor cuja simpática dona nos informa que em dois dias chega uma “flota” que vem de Uyuni e que vende vegetais, fruta e outras mercearias. A flota é o único autocarro semanal que passa pela aldeia e que alem de transportar passageiros é também o mercado ambulante desta desolada região e a única forma que a população tem para comprar vegetais frescos - as áridas terras do sudoeste do altiplano não são férteis para o cultivo. Sem comida para continuar, não temos alternativa senão esperar 2 dias pela dita “flota”.

A Joana corta-me um pouco a barba e desinfecta-me o queixo mais uma vez. Viajar no altiplano boliviano em bicicleta é de facto uma experiência maravilhosa, mas se as coisas correm mal não há muito onde ou a quem recorrer. As hostilidades dos elementos são algo que não devem ser subestimados. Mas não me senti muito preocupado, no máximo ficarei com uma cicatriz que me irá recordar para toda a vida esta etapa de ciclo-turismo de adrenalina pura.

No próximo e ultimo blogue desta árdua etapa de 47 dias sem ver alcatrão e a pedalar em altitudes que variaram entre os 3600m e os 5800m entramos numa zona ainda mais inóspita cuja desolação da paisagem faz lembrar o planeta Marte. Será que conseguimos “conquistar” o Uturunco com as nossas burras carregadas? Será que conseguimos terminar esta etapa sem maiores percalços? Já ficarão a saber nos relatos da próxima cronica.

Vulcao Uturunco(6020m). Notem a estrada no "cone" do vulcao. Essa estrada sobe aos 5800m e sera o grande desafio da proxima etapa.


Nuno Brilhante Pedrosa

8.28.2008

"Into the wild" parte II. A travessia dos salares de Coipasa e Uyuni (Bolivia)

DIA 9
43.1 km
Altitude máxima 3724m
Altitude de acampamento 3644m
De Sabaya à “ilha” de Coipasa.


Finalmente de novo na estrada e sem grandes obstáculos. Ontem acabámos por conseguir uma boa quantidade de alimentos e 14 litros de agua, que pensamos ser suficiente para a travessia da primeira salina.

Foi um prazer pedalar pelas estradas de lavadouros sem ter que empurrar as burras por dunas de areia. Passamos por varias aldeias abandonadas a caminho da entrada do salar situada pouco depois da aldeia de Villa Vitalina (km 27). Ai pudemos avistar o enorme salar que iremos atravessar amanhã.
Do “Terraplèn”(plataforma de acesso), até a ilha de Coipasa foram 10 km fáceis, por vezes pela estrada ensaibrada outras vezes pedalando pelo sal. Montamos acampamento na ilha de Coipasa com fantásticas vistas para o lago de sal.



A paisagem era surreal, nunca tinha visto nada assim. As salinas de coipasa e Uyuni são parte de um antigo mar atrapado quando as placas tectónicas do pacifico chocaram com as do continente sul-americano criando lagos salgados. Com a consequente criação dos Andes as águas evaporaram criando as salinas. Todos os anos a época das chuvas inunda as salinas criando lagos salgados. A forca da radiação solar nos meses de verão seca quase na totalidade a superfície do lago, criando um vasto manto de um branco tão forte que é difícil observar sem a protecção de óculos de sol.

DIA 10
47.7 km
Altitude máxima 3678m
Altitude de acampamento 3629m
Da ilha de Coipasa ao meio do salar de Coipasa.


Hoje entramos finalmente no salar, noutra dimensão de ciclo-turismo, uma experiência inigualável e difícil de descrever. Foi como pedalar num planeta plano onde as únicas cores que existem é o azul do céu e o branco da terra.

Saímos do acampamento tarde, como já é nosso costume, e na pequena aldeia de Coipasa compramos mais alguns mantimentos e enchemos as garrafas com água do poço da aldeia. A entrada do salar está bem assinalada e marcada com rastos de pneus, mas poucos quilômetros depois os trilhos desaparecem e damos conosco no meio do salar sem vestígios de rodadas. Mas não nos pareceu difícil a orientação, uma vez que para sul podíamos avistar vários picos aos quais fizemos um azimute.




O salar de Coipasa apesar de plano esta longe de ser suave, com crostas de sal a despontar á superfície e que dificultavam bastante a pedalada. Era como uma violenta massagem ao corpo. Cerca de 10 km depois encontramos de novo rodadas de carros as quais decidimos seguir uma vez que iam para sul. A Joana perde o seu casaco algures no percurso, mas decidimos avançar. O nosso progresso para sul foi travado ao final da tarde por algo inesperado: água!

Um senhor na aldeia de Coipasa tinha nos advertido que certas zonas do lago ainda não estavam completamente secas e sugeriu uma rota alternativa junto á fronteira com o Chile. Não lhe tínhamos feito caso por ser uma volta muito maior. E aqui estávamos nós rodeados de água por todos os lados e sem saber o que fazer. A Joana decide tirar as botas disposta a continuar. Fiquei incrédulo com a sua despreocupação. Apesar de as montanhas estarem bem visíveis á nossa frente, era impossível estimar a que distancia estaríamos de terra firme e muito menos a profundidade das águas. O sol não tardaria a esconder-se por detrás deste mundo branco e as águas gélidas e de alto teor salino com certeza que se entranhariam no corpo. Os riscos de uma hipotermia eram elevados, queríamos aventura, mas não por as nossas vidas em risco. Com a ponta do pé apoiada num monte de sal, equilibro a bicicleta e observo a paisagem em meu redor. Era de uma beleza surreal, mas a beleza, por estas bandas pode ser traiçoeira.
-“Joana, vamos regressar”.
-“Eu acho que deveríamos continuar, disse, não deve faltar muito para terra firme”.
-“Não, temos que regressar a sal seco, é demasiado arriscado”.
Não me sentia confortável com a situação. Pedalamos vários quilômetros na direcção oposta até entrarmos de novo em sal seco e montamos as tendas sob um por do sol mágico.


Estávamos os dois sós, nós e aquele mundo infinito de branco. Essa noite o frio emanava do manto de branco e atravessava o saco-cama gelando o corpo a mente. Não dormi bem, estava preocupado. E se tivéssemos decidido avançar? O que teria acontecido?

DIA 11
18.4 km
Altitude máxima 3697
Altitude de acampamento 3647m
Do meio do salar de coipasa até depois de três cruces.


Levanto-me pouco depois do nascer do sol, e munido com a maquina fotográfica e binóculos, parto em busca do casaco da Joana. Sentia-me culpado por a ter persuadido a deixar-lo para traz, e na obrigação de o ir procurar. Apesar de ontem termos pedalado quase sempre ao acaso, não foi difícil encontrar um vulto de um azul vivo no meio daquele mar branco. Regresso ao acampamento e já a Joana tinha cozinhado meia dúzia de deliciosas panquecas.


A travessia final do lago de sal que eu tanto temi ontem á tarde foi de apenas 5 km e a profundidade da água nunca ultrapassou os 20 cm a 25 cm, mas foram os cinco quilômetros mais mágicos de todas as minhas experiências de ciclo-turismo.
O céu espelhado nas águas do lago, dava a sensação de estar a pedalar sob as nuvens, no centro de uma pintura tridimensional de Dali.




Sentia-me privilegiado por estar ali e por poder partilhar aqueles momentos com a Joana.
Com o regresso a terra firme regressamos também ao nosso pesadelo do altiplano: areia! Chegamos a Tres Cruces depois de vários quilômetros a empurrar as burras por um caminho arenoso. Perguntamos a varias pessoas qual o melhor caminho para Llica.
- “Mira essa moto”, disse um local apontando para o único veiculo motorizado na aldeia. “vem de Llica, basta seguir os rastos dos pneus”. Levados pelos conselhos dos locais, algum tempo depois estávamos de novo a empurrar as bicicletas pela areia.


Ovos estrelados e... congelados!

Acampamos pouco depois com apenas 18 km percorridos. Mas quilometragens têm pouca importância no altiplano boliviano, as condições das estradas são tão más que por vezes 20 km percorridos podem ser equivalentes a um dia de ciclismo bastante desgastante!

Dia 12
27.9 km
Altitude máxima 3767m
Altitude de acampamento 3753m
De depois de Tres Cruces a depois de Challacollo.


Nada melhor para começar o dia do que a empurrar as bicicletas pela areia! O caminho agora era tão arenoso que fizemos apenas 3 km numa hora.

Era obvio que estávamos perdidos, víamos rodadas de moto na areia, mas já não tínhamos a certeza de que eram da “nossa” moto. Não teria a moto usado um corta-mato pela areia? Talvez existisse outra estrada melhor.
-“não! Outra vez não!” Não queria repetir a etapa das dunas de areia de Sabaya. Tive mais um dos meus ataques de frustração “altiplanicos”. Ao fundo junto às salinas podíamos ver um veiculo a mover-se com certa rapidez.
- “Tem que haver uma estrada melhor”, disse para a Joana, “isto é de loucos! Isto não é ciclo-turismo, é ciclo-masoquismo!”
A Joana, apesar de não o mostrar, partilhava das mesmas emoções. Fazemos um azimute pela areia com direcção ás salinas e uma hora depois estávamos a pedalar por um caminho, que apesar de arenoso, estava em condições aceitáveis. Ao final da tarde chegamos á aldeia de Challacollo, perdida no meio deste ventoso e vasto altiplano semidesértico.




A Joana pergunta a um dos poucos residentes se estávamos no caminho certo para Llica. “Sim, mas a um quilometro há um cruzamento, NÃO vão pela direita”, disse o residente daquela aldeia semi-abandonada. Chegamos ao cruzamento e paramos, abrimos os mapas e a bússola. Nada fazia sentido. Decidimos, mas uma vez, seguir os conselhos dos locais e terminamos o dia noutro caminho arenoso que parecia não ir a nenhum lado.


Decidimos acampar e pensar melhor o que fazer no dia seguinte.
Estávamos exaustos!

DIA 13
13.6 km
Altitude máxima 3754m
Altitude de acampamento 3711m
De depois de Challacallo até Llica


pela manha passam pelo acampamento uns locais a caminho da suas "choças" que nos indicam que estamos no caminho errado. regressamos ao cruzamento e seguimos pela estrada mais trilhada. Chegamos a Llica antes do meio dia. Llica situada entre os salares de Coipasa e Uyuni é a aldeia com maior importância na região onde existe comércio suficiente para ter lojas bem recheadas de mantimentos e vários alojamentos.
Existe até um internet café, o primeiro que vimos desde que saímos de Oruro há 13 dias. Foi a única oportunidade que tive de contactar o Antonio Queirós e dizer-lhe que estávamos com uma semana de atraso para o nosso encontro em Uyuni. O Antonio é um aventureiro português a percorrer as Américas de moto - mas mais acerca dele no final da crónica. A Joana sentia-se doente e sem energias, e ambos estávamos fartos de empurrar as bicicletas pela areia. Necessitávamos de descanso.
Passamos o resto do dia no quarto do hotel.


DIA 14
59.7 km
Altitude máxima 3711
Altitude de acampamento 3673m
De Llica á ilha do pescado.


Logo depois de sair de Llica podemos avistar o salar de Uyuni, a maior salina do planeta com uma superfície de 10500 km quadrados, equivalente ao dobro da regiao algarvia. Iria levar-nos três dias a atravessa-la. Pedalamos cerca de 10 km bordeando a salina até chegar a um “terraplén”, plataformas de acesso as salinas construídas em pedra, brita e misturadas com sal, que permitem um acesso seguro para veículos. As margens das salinas podem ser arenosas e lamacentas e é possível que um veículo se afunde se não usar as entradas apropriadas, obviamente para as nossas bicicletas isso não seria um problema.


Ao longe no horizonte podíamos ver a ilha do pescado, a maior ilha do salar. “Navegamos” por este infindável mar branco usando os trilhos deixados pelas rodadas dos carros. Ao final da tarde chegamos á ilha do pescado, nome adquirido pela sua forma que lembra a de um peixe.


“Atracamos” na costa Este da ilha e subimos um pequeno morro onde montamos as tendas, obtendo assim fantásticas vistas do por e do nascer do sol.

A ilha é um lugar estanho com rochas fossilizadas de animais marinhos relembrando-nos do tempo em que este imenso deserto de sal estava submerso pelos oceanos, cactos gigantes centenários destacando-se no horizonte como sentinelas da ilha, e fosseis de animais marinhos fazem lembrar que isto em tempos já esteve submerso pelos oceanos. Aqui o tempo parou há milhares de anos.


DIA 15
37.6 km
Altitude máxima 3683
Altitude de acampamento 3671
Da ilha do pescado ao meio do salar de Uyuni.


Continuamos a nossa ciclo-deambulação pelo manto branco da salina, usufruindo da tranquilidade e silencio que nos rodeava quebrado apenas pelo som das rodas a esmagar as crostas hexagonais de sal seco. Um curioso processo criado por fissuras na crosta de sal e pela forte radiação solar. Ao contrario do salar de coipasa, aqui conseguíamos atingir 20 km horários sem grandes esforços físicos. O mundo à nossa volta era todo plano, de facto é a superfície mais plana do planeta e lugar utilizado para a calibração de satélites artificiais. A meio da tarde avistamos no horizonte um ponto negro que julgamos ser mais um jeep cheio de turistas que cruzam incessantemente esta parte do salar. Mas pouco a pouco o ponto negro começou a tomar a forma de uma bicicleta. O Herve é um ciclo-turista suíço que já viaja pela America do sul há vários meses e se encontava na sua fase final de regresso a La Paz. Decidimos acampar juntos ali mesmo.

O Herve(visitem o seu site aqui), experiênciado ciclo-turista, deixou a sua terra natal um dia com rumo à África e nunca mais voltou. Depois de dois anos a pedalar pelo continente Africano, encontrou trabalho como guia de safáris na Namíbia e ai tomou residência, lugar donde financia as suas viagens que faz em bicicleta mundo afora. Sem duvida uma historia interessante e inspiradora de novas aventuras. Quem sabe um projecto para o futuro, a volta a África em bicicleta? Essa noite por descuido deixei a botija de água quente da Joana na parte da frente do seu saco-cama e ela ao entrar na tenda rebentou-a molhando o saco, o colchão e tudo em redor. Era só o que nos faltava!Estávamos no meio deste gigantesco lago de sal onde as temperaturas nesta altura do ano podem chegar aos 25 graus negativos. Não tivemos alternativa senão dormir os dois no meu pequeno saco de cama, um verdadeiro teste á nossa relação!

DIA 16
63.4 km
Altitude máxima 3698m
Altitude de acampamento 3678m
Do meio do salar ao museu de sal em Colchani.


Ontem passamos uma noite muito fria. Não cabíamos os dois dentro do saco de cama e cada movimento, por menor que fosse, tinha que ser coordenado em simultâneo. O Herve antes de partir oferece-nos um chocolate suíço - clássico! Prometemos come-lo apenas no topo do vulcão Uturunco a 6020 metros de altitude, lugar onde esperávamos levar as nossas bicicletas na próxima etapa. A estrada de acesso ao vulcão é considerada (por alguns) como a estrada mais alta do mundo e iria ser o culminar de todos os nossos desafios durante esta longa etapa de 47 dias sem ver o alcatrão.

Os meus calcoes que depois de muitos milhares de quilometros percorridos e reparacoes sem conto e que tiveram que ser substituidos depois desta etapa-:)

A parte final do salar foi a menos interessante da travessia, durante o dia inúmeros jeeps, cheios de turistas passaram por nos a caminho de Inkawasi, uma pequena ilha turística no meio do salar, na qual decidimos não parar. Chegamos a Colchani depois de três dias a pedalar pelo sal, tínhamos feito nos dois salares um total de 240 km a pedalar sobre o sal.
Colchani, uma pequena aldeia poeirenta nas margens das salinas, cuja população vive da extração do sal e do turismo, tem um pequeno museu dedicado ao sal e oferece também alojamento num hotel feito de sal. Éramos os únicos hospedes no hotel e a dona decide entregar-nos as chaves e ir para casa deixando-nos a sós.



DIA 17
23.3 km
Altitude máxima 3712m
Altitude de acampamento 3705m
De Colchani a Uyuni.



Chegamos a Uyuni depois de 23 km desinteressantes por estradas de lavadouro e mais areia. Em Uyuni encontramo-nos com Antonio que já nos esperava há mais de uma semana. O Antonio já viaja em moto há quase um ano pela America do Sul e pretende chegar até ao Alasca não sabe bem quando (visitem o seu site aqui). Funcionário bancário reformado viaja sem tempo limite e sem grandes itinerários definidos. Sem duvida a melhor forma de viajar. Iríamos passar os próximos dias na sua companhia e a descansar de mais uma árdua etapa.


Na próxima crônica a terceira parte da nossa extensa viagem pelo altiplano boliviano entramos numa zona de maior altitude, mais isolada e de paisagens mais inóspitas. O nosso próximo destino: subir a estrada mais alta do mundo. Mais um acidente com a bicicleta, ventos ciclonicos (e mais uma vez) dificuldades em encontrar água e comida iriam dificultar todos os nossos planos de viagem e até mesmo altera-los.

Visitem tambem a pagina pessoal da Joana em movimentos-constantes

Nuno Brilhante Pedrosa