9.23.2007

A travessia para a Colômbia parte II (Panama)

Dia 4
Ilha de Carti para ilha de Playon chico.
A bordo do barco Purtugandi


Hoje foi um dia de viagem na horizontal. Mar calmo, dia cheio de sol e eu deitado na plataforma superior deste barco mercantil Kuna, com uma vista de 360 graus do mar azul turquesa das caraíbas. Passamos por dezenas de pequenas ilhas, muitas delas desertas, com areia branca e fina e alguns coqueiros. Verdadeiras ilhas de fantasia. Outras em contraste, super povoadas, cobertas com casebres de bambu.

O barco foi parando ao longo do dia para descarregar mercadoria, arroz, cerveja, farinha, redes, produtos enlatados, gasolina, tudo o que os habitantes das ilhas possam comprar, até o ocasional frigorífico ou televisor. O Purtugandi é literalmente um armazém flutuante. Compra por catálogo no mar. Digo isso porque grande parte das mercadorias são encomendadas previamente aos capitães dos muitos barcos que frequentam as 37 ilhas habitadas do arquipélago de San Blas. Os produtos são comprados na "zona libre" de Colon, livres de impostos e na sua maioria produtos baratos chineses e americanos.

Nalgumas ilhas mais pobres onde não há electricidade ou água potável e cujo único edifício que não é feito de bambu é a escola construída pelo governo central, a chegada do Purtugandi é um entretenimento assistido por muitos. Mulheres e jovens e crianças aglomeram-se em redor do cais à espera das mercadorias, os homens estão quase todos no mar à pesca nos seus cayocos (canoas feitas de um único tronco de árvore).
As mulheres Kuna parecem tomar conta dos negócios da ilha, verificam a mercadoria, transportam-na às costas, trocam facturas, pagam e fazem novas encomendas. Os jovens carregam o mais pesado, bidons de gasolina ou sacos de farinha.
Cada paragem pode levar algo entre 10 minutos a várias horas.

O barco atracou ao final da tarde em Playon Chico, uma outra ilha cerca da costa e ligada ao continente por uma ponte pedestre. Em terra firme encontrava-se a escola, uma igreja mórmon e a pista de aterragem. Voos diários ligam a cidade de Panamá com Playon Chico e algumas outras ilhas habitadas do arquipélago. Essencialmente para comprar lagostas e mariscos,e para transporte de passageiros, Kunas que decidiram viver no mundo latino e turistas que se alojam em resorts de "luxo" ("luxo" entenda-se como rústico, pois não há resorts tipo Cancun por estas bandas) em ilhas desabitadas.
Saio do barco para dar um passeio e conheço uns jovens Kuna com quem iria passar o resto da noite. Levaram-me a conhecer a ilha e falaram-me com entusiasmo acerca da cultura Kuna. Os Kuna são um povo orgulhoso e tenás. É o grupo indígena mais bem organizado no Panamá e o único (dizem os meus amigos) com representante legislativo. Governam a comarca de Kuna Yala com pouca interferência do governo central.

A maioria dos Kuna vive numa das 37 ilhas habitadas das 365 ilhas que existem ao longo da costa da comarca, entre Provenir e a fronteira da Colômbia.
A falta de estradas sempre os manteve mais isolados que outros grupos indígenas, e o barco é o meio de transporte usado entre as 49 comunidades que existem nas ilhas e ao longo da costa.
Cada comunidade tem um líder (cacique) que elegem como representante para o governo central, e que tem poder de decisão (por vezes arbitrário) na suas comunidades. Como me contou um dos jovens que foi multado em 5 balboas pelo Cacique por ter sido apanhado na cama com uma jovem de outra comunidade.
A noite prolongou-se terminando na casa de um deles. Um casebre em bambu onde algumas mulheres bordavam Molas (panos bordados que fazem parte do traje das mulheres Kuna)à luz de candeeiro a petróleo.






Dia 5
Playon Chico para Ilha "paraíso" (?)
A bordo do Purtugandi


Partimos lá pelas 8 horas para mais uma sessão de deambulação pelos paraísos perdidos das ilhas de San B las. Com cada ilha que visitava parecia mais fascinado com este povo. Um mundo à parte na América Central.
Hoje troquei de barco.
O barco Kuna onde seguia ia parar por 2 dias em Istupo.
Aqui nesta ilha que ainda não sei o nome, está atracado um outro barco que segue para puerto Obaldia amanhã, junto à fronteira com a Colômbia. Chegarão lá daqui a 2 ou 3 dias. Ainda não sabem. Os capitães dos barcos estavam de acordo, era melhor para mim. Pego na burra e nas malas todas e mudo de barco. O meu novo barco tem uma atmosfera muito diferente. Os tripulantes são todos de raça negra e mestiça, vindos de Colon, e andam nestas bandas no negócio do coco. Compram aos indígenas e vendem aos colombianos. A atmosfera do novo barco é menos simpática mas é compensada pela ilha onde passamos a noite. Um pequeno paraíso.






dia 6
Da ilha "paraíso" para ilha Ballena
A bordo do barco Colon


Amanheço na minha rede montada no porão. O barulho do motor a começar a trabalhar despertou-me. Ainda o sol não tinha nascido sobre a linha infinita do horizonte quando o barco deixou o cais e desliza nas águas escuras e calmas da baía.
Este pessoal era madrugador. Ia ser mais um longo dia de viagem no mar, mais longo do que eu jamais imaginara.
Este novo barco- ao contrário do Purtugandi - fazia poucas paragens. Navegava por entre ilhas, algumas delas autênticos postais paradisíacos, um monte de areia fina a brotar das águas azul turquesa, com alguns coqueiros plantados. Algumas delas eram usadas pelos narcotraficantes e contrabandistas colombianos, como eu iria presenciar bem de perto mais tarde.
Um dos artigos no estatuto autónomo da comarca de Kuna Yala, proíbe a marinha do Panamá e a DEA (drugs enforcement agency) Americana de patrulhar as suas águas, tornando a comarca numa espécie de "free zone" para contrabando. Existem portos policiais mas eles pouco fazem para controlar o contrabando.

A meio da manhã o barco ancorou ao largo da ilha de Ballena ( assim chamada pela sua forma que se parece com uma baleia), pois o cais era pouco profundo para atracar. Uma traineira colombiana encosta ao barco e inicia-se o longo e árduo trabalho de traslado de carga: cocos!
35.000 cocos foram passados e contados um por um do convés de um barco para o outro. Um processo supervisionado por ambos os capitães com um pedaço de cartão e caneta na mão, e que levou todo o dia, até ao entardecer.
Os cocos eram vendidos aos colombianos por 11 cêntimos de dólar. Os indígenas que subiam aos coqueiros recebiam ainda menos por unidade. Cocos de melhor qualidade do que na Colômbia (por terem a parte branca interior mais espessa), eram levados para esse país para fazer os mais diversos produtos.
Um trabalho árduo e pouco lucrativo que, segundo os marinheiros, estava em decadência. Os índios Kuna ja não querem cultivar as terras. Preferem dedicar-se à lucrativa pesca da lagosta ou ao narcotráfico.






Durante o dia iam entrando e saindo de ambas embarcacoes, diversas pessoas que chegavam em cayocos ou em pequenos barcos a motor. Um deles que se dizia "capitão" (e que eu supos ser da traineira colombiana) disse que ia para a Colômbia e que me levava por 50 dólares. Perguntei-lhe para onde, mas deu-me uma resposta vaga. Perto de Cartagena, disse. Se assim fosse ia poupar vários dias de viagem. E apesar de achar cara a viagem, iria ser mais barata do que se fosse via Puerto Obaldia.
Passo a bicicleta e malas para a traineira e pago ao capitão do Colon 5 dólares pelas 24 horas que passei a bordo.

Ao entardecer a traineira colombiana atracou no cais da ilha para passar a noite. Alguém me ofereceu jantar ( durante as viagens anteriores as refeicoes também estavam incluídas, normalmente peixe apanhado no dia com arroz). No cais estavam também outras pequenas embarcações e lanchas - quase todas de contrabando - e havia bastante agitação. Um marinheiro indica-me para colocar a burra e as malas no cais que o barco para a Colômbia ia partir.
Já não percebia nada! Então não ia partir amanhã? E não era na traineira cheia de cocos?!
Pouco depois apareceu o meu "capitão" a bordo de uma lancha com pouco mais de 2 metros de largura e cerca de 15 ou 20 de comprido, com 2 poderosos motores e carregada - nunca cheguei a saber de quê.
-"Passa as tuas coisas, entra. Vamos partir", disse.
Partir para a Colômbia durante a noite nesta coisa? Por mar alto?
Estava petrificado.
-" Sim, vamos. Para a Colômbia. Queres vir ou não?" perguntou em voz agitada como se de repente estivesse cheio de pressa. Não sabia o que fazer. Tinha que tomar uma decisão, e já! Olho para as outras pessoas que estavam a assistir à cena toda em busca de uma resposta. Um olhar afirmativo, alguma indicação de que estava a tomar a decisão certa. Mas nada, alguns riam-se, outros olhavam com ar apático e indiferente.
-"Tu queres vir para a Colômbia, certo? Vamos! I nsistia o capitão.
Ele tinha razão. Eu queria ir para a Colômbia e não podia perder uma semana em barcos que paravam em todas as ilhas ao longo do caminho. Tinha que estar em Cartagena no dia 24 e já me restavam poucos dias.
-Vamos! disse.
Coloquei a burra sobre a carga já coberta com um oleado e as minhas malas consegui de alguma forma colocá-las na parte da frente por debaixo do oleado. Deixamos o cais e o barco desapareceu na escuridão da noite.

Tinha acabado de entrar num barco de contrabando colombiano a caminho de lugar incerto e iria entrar ilegalmente no pa ís.
As 11 horas que se seguiram foram uma viagem alucinante que jamais irei esquecer.

Segue-se nos próximos dias o relato da terceira e última parte da travessia.

Nuno Brilhante
em Maria la Baja, Colômbia

1 comment:

Nidia said...

Que viagem maravilhosa. Gostaria de tê-la feito. Gostaria também de ilustrar um livro para o Ensino Médio, de química, que estou escrevendo com uma das fotos das pequenas ilhas desertas com coqueiros. No texto falo de como a poluição é arrastada pelas aguas. A existência desses coqueiros é uma prova disso. Obrigada.
Abraços, Nidia