9.04.2007

"The road less travelled" (Nicaragua)

A chegada da Teresa coincidiu com a partida do Jeff. Viajamos juntos por 4 países e custou-me vê-lo partir. Mas tínhamos planos diferentes para as próximas semanas. Ainda faltam percorrer cerca de 10.000 km de estrada pan -americana e vamos ambos para a terra do fogo. provavelmente os nossos destinos cruzar-se-ao de novo lá mais para sul.

A Teresa cansada de esperar pela sua burra perdida algures no espaço aéreo entre Lisboa, Newark e San José, decidiu vir ao meu encontro e comprar uma bicicleta nova em Granada. Com a escolha limitada às marcas nacionais,Raly USA, Linx ou Toby Trek a escolha não foi difícil. A Teresa optou por uma linx "desierto" azul prateada por apenas 1100 cordobas. Cassete e mudanças trocadas por shimano, um suporte traseiro e uns "cornos" no guiador e o preço subiu para 1800 cordobas. Uns meros 70 euros. Baptizamo-la de Toña, uma apologia à cerveja nacional e à condução que proporcionava.

A nossa primeira etapa era chegar a Omepete ( 80km de granada com uma travessia de barco desde San Jorge). Uma ilha no lago Nicarágua que o meu guia de viagens descrevia como "jóia ecológica". A maior ilha do mundo- isto é, num lago de água doce- em forma de 8 e com um vulcão a cada lado. O vulcão Maderas a sul e o vulcão Conception na parte norte, que se elevava 1610 metros das águas do lago num cone quase perfeito.

Saímos da pan-americana por uma estrada secundária que terminava junto ao lago para reaparecer 25 km mais a sul. A praia era a estrada. Encostamos à margem do lago e seguimos sobre a areia enrijecida com as ondas a bater nas rodas.
Uma chegada pontual ao porto de San Jorge e estávamos a bordo do ferry para a ilha a contemplar o vulcão à distância ou ocupados numa busca furtiva de observar um tubarão.

O lago Nicarágua é o décimo maior lago de água doce do mundo, 177 km de comprimento e 58 km de largura. Nas suas águas habitam tubarões que foram encurralados quando a baía do pacífico se separou do oceano com a subida da crosta terrestre formando o lago, e adaptaram-se lentamente com a transformação das águas de salgadas para doce.

Apesar da ilha merecer mais tempo de visita, passamos apenas uma noite nela. Há apenas 2 barcos semanais da ilha para San Carlos, o porto fronteiriço na margem sudeste do lago, e perder um implicava 3 dias de espera pelo próximo.
O barco fazia 2 paragens na margem leste do lago. A primeira no porto de Morritos (o início das nossas próximas pedaladas incógnitas) e outra em puerto Miguelito.
Essa parte da Nicarágua estava fora dos roteiros turísticos, dos guias de viagem ou das paisagens de postal. Um bom indicativo.

O barco saiu já de noite, cheio de turistas, locais e carga. Peixe, bananas e outras cenas que os locais transportavam e que pareciam suficientes para sobreviver um inverno nuclear.
As nossas burras ficaram para o fim, depois dos carregadores em tronco nu musculados, e suados terem carregado o que me pareceu ser metade da produção de bananas da ilha, cachos e folhas incluídas.

O barco deslizava pelas águas escuras ao ritmo da vida por estas bandas, atracando com ligeireza em Puerto Morritos já pela noite dentro. O ar da noite era espesso e abafado. Apenas alguns locais desembarcaram, nós e as burras, ao olhar incrédulo dos turistas confusos com as nossas intenções. Afinal de contas Puerto Morrito não vinha no Lonely Planet. Porque desembarcar aqui nesta pequena aldeia perdida no meio da escuridão desta vasta área inexplorada (pelo turismo) da parte leste da Nicarágua? Era mesmo essa a nossa intenção.

Em Omepete quando questionamos os locais acerca dessa parte do lago, pouca informação obtivemos. A maioria nunca estiveram lá, no entanto estavam apenas a 5 horas de barco.
"A estrada é má" disse um, "péssima" disse outro. "Pode mesmo estar inundada nesta altura do ano". Porque não íamos de barco até San José como todos os outros turistas?

Preocupava-me pela Teresa e pela sua Toña. Estávamos a viajar juntos apenas há 2 dias e ainda não a conhecia o suficiente, além de que a sua bicicleta estava a dar alguns problemas.
Como estava enganado!
Nenhum outro companheiro nesta viagem me mostrou tanta determinação e "adaptabilidade" às circunstâncias de viajar em duas rodas.

A aldeia -para nossa surpresa- estava "cheia" de vida àquela hora da noite. O som da algazarra das rãs e sapos elevava-se como que em desafio ao som da música vinda de um bar cujos únicos clientes eram 4 pessoas sentadas em redor de uma mesa cheia de garrafas de Toña.
Fomos abordados por 2 polícias que nos questionaram acerca das nossas intenções. Registaram num pedaço solto de papel, à luz do meu frontal, os dados dos passaportes. Nunca viemos a saber porquê.

Alojamo-nos na "hospedaje" Jimenez. Uma suave introdução ao alojamento que nos esperava por estas bandas. Um quarto pequeno (onde enfiamos as burras) com ar de limpo que partilhamos com a população residente de mosquitos e baratas. O banho à "Indiana" ficava ao fundo de um corredor sem luz. No centro do compartimento escuro, um balde com um pequeno recipiente de plástico a boiar na água - do lago. O chuveiro.
Pagamos 3 euros pelas "comodidades".

O amanhecer revelou um dia húmido mas cheio de sol dissipando a neblina matinal e o ar inóspito da noite anterior. Tomamos como pequeno almoço os cereais que a Teresa trouxe de Portugal (aqui também se vendem!), seguido de um segundo pequeno almoço - como se tornou habitual - huevos com gallo pinto (arroz com feijão) queijo fresco e café.

Tentamos mais uma vez afinar - sem sucesso - os travões da Toña, numa das suas "birras" matinais. Um rapaz de alicate na mão foi a solução.
Fez-me lembrar uma das minhas viagem à Índia a "bordo" de uma moto Royal Enfield, dos seus constantes problemas de mecânica, e de como qualquer indiano de martelo na mão se intitulava de "mecânico".

Fizemo-nos à estrada.

Os primeiros 15 km desde Morrito até a bifurcação com a estrada "principal" não foram muito diferentes do que já estava habituado na Nicarágua.
Estradas de saibro ou brita solta, transformando-se em calhau rolado junto as linhas de água, cortando a paisagem sem se esforçar por contornar montes, com empenos de 15% e 20%.

Depois de várias paragens para atender as birras da Toña: porcas que não dão aperto, calços de travão perdidos, mudanças que não entram, etc, chegamos à estrada principal que liga toda esta vasta região leste do país.
2 estradas de saibro numa região com uma superfície maior que o Alentejo. Uma de Juigapa para Rama, a leste, e outra para sul até San Carlos.
A estrada era mais ampla, quase sempre plana, mas muito mais degradada. Afinal a estrada "má" e "péssima" sempre existia.

Nicarágua é um pais muito pobre, mas por estas bandas a pobreza tem outros olhos. Está em harmonia com a terra.
Cabanas de madeira com tecto de colmo ao longo da estrada, cujos residentes partilham o espaço com os animais domésticos, vacas, galinhas, porcos, patos. E os menos domésticos, como papagaios, macacos ou iguanas. No meio, entre todos, os cães, esfomeados, doentes e vadios. Desafortunados por nascer nesta parte do planeta.

Da intimidade de um lar vinham olhares curiosos, por vezes incrédulos. Um "hola" em tom de pergunta. Uma travagem. Um pé no chão. Um olhar com um sorriso. Troca de impressões e um dedo de conversa.
É esta a grande vantagem de viajar em bicicleta: parar, sentir, cheirar, conversar a qualquer instante.
A sensação de "consciencialização" é imediata!

À tarde preparamo-nos para uma noite incerta. Enchemos as garrafas com água do poço de alguém e vegetais com cheiro a terra comprados numa "tienda" qualquer à beira da estrada.
Chegamos a El Tuli já o sol se tinha posto em lugar incerto num horizonte escuro e carregado de nuvens.
As chuvas tropicais vieram tarde nesse dia, deixaram-nos pedalar durante todo o dia.

Não foi preciso acampar.
Os donos de uma mercearia tinham construído em forma ordenada 3 quartos no quintal das traseiras, isto é, partilhar a noite com a bicharada doméstica. Mas fizeram-no, não a pensar nos turistas mas nos nicaraguenses que visitam a aldeia nas festividades anuais.
A casa não diferia muito das que tínhamos visto ao longo do dia, com uma diferença: era construída em cimento. Sólida.

O banho (de bidão) entre umas tábuas debaixo de uma árvore de manga, e do outro lado do quintal, passando o curral do porco, a casa de banho. O tradicional buraco na terra com uma plataforma de madeira. Pedaços de jornal espetados num prego ferrugento. Uma casa de banho como tantas outras por esta região, deferindo apenas num pequeno pormenor. Não havia um, mas dois buracos na plataforma de madeira. Um ao lado do outro. Uma verdadeira incógnita. Será que ocorreu aos donos que os seus hospedes gostariam de ir a casa de banho aos pares? Ou seria para acomodar hospedes e membros da extensa família ao mesmo tempo?

San Carlos é um porto quente e pantanoso na ponta sudeste do lago Nicarágua junto ao rio San Juan. Daqui partem barcos para a costa das caraíbas através do rio San Juan e também para los Chiles , na Costa Rica.
Não há muito para ver ou fazer em San Carlos, mas depois de 2 dias aos solavancos pela Nicarágua "nua e crua" a cidade pareceu-nos cheia de vida e até me atrevo a dizer, moderna.

Uma viagem de barco de uma hora pelo rio Frio e entravamos na Costa Rica. O conta quilómetros tinha passado essa tarde a marca dos 20.000 km. Esta foi a primeira fronteira que passei para sul e que entrei num país mais rico...

As diferenças eram enormes. Estradas alcatroadas em excelente estado (se bem que estreitas e sem bermas), supermercados com produtos importados, hotéis sem cortes (diários) de água ou luz e cafés com máquina de expresso!
E verde, muito verde. Um verde luxuriante que quase que intoxica.
Bem vindo à capital mundial do eco-turismo.

Eco-turistas (principalmente americanos) adoram a costa rica. Provavelmente (era) um dos países mais seguros de toda a América central. As forcas armadas foram abolidas depois da guerra civil de 1948 e o país tem evitado as ditaduras e grupos insurgentes que tanto tem afectado a vida nos países vizinhos. Os "Ticos" foram rápidos a perceber os benefícios da preservação da natureza, e de momento 27% da superfície do pais è área protegida.
O que quase que garante a um profissional citadino de Nova York ou Lisboa nas suas férias de uma ou 2 semanas, ver um macaco ou um tucano no seu habitat natural, por vezes sem ter que sair da varanda do quarto do resort.

O problemas de tudo isto, para nós vagabundos em duas rodas, é que a Costa Rica é cara. Muito mais cara que os países vizinhos. Segundo o meu índex da pan-americana (pendente da patente e ponto COM), uma coca-cola em território Tico custa 3 vezes mais do que em território Nica.

Passamos a nossa primeira noite na Costa Rica em Los Chiles e, no dia seguinte, iniciamos o nosso trajecto rumo a San José.
Dentro de vários dias chegava à capital o (meu primo) Pedro Pedrosa. O plano seria seguirmos os 3 juntos para o Panamá. A Teresa e o Pedro regressariam a San José no final de Agosto e eu seguiria para leste rumo à capital do Panamá, onde teria que tomar a decisão mais difícil de toda a viagem: Darien? Ou não!
Mas mais acerca disso mais tarde.

Pelo caminho para San José, a Teresa iria fazer um último teste à sua problemática burra e a sua determinação em triunfar as cruéis "trepadas" da Costa Rica. Não consigo imaginar um outro nome tão apropriado para as subidas na Costa Rica, como o utilizado pelos locais: "trepada".
Subidas com 12% e 15% ininterruptos km após km, com partes a 20%. Do mais durinho até ao momento. A meio da subida para a meseta central, um descanso bem merecido na idílica laguna de Hule. Um oásis de paz neste país cheio de turismo de massas. Mais um dia de "trepada", e depois o descanso. O downhill para San José.

Tinha deixado a Nicarágua há poucos dias, mas já estava desejoso de um dia lá voltar. Nicarágua é um daqueles países que deixa uma pessoa insatisfeita.
Como um outro ciclo-turista que conheci na Pan-Americana me descreveu:
"cumplicidade ininteligível que arde em saudade".
Ruben Dario com certeza não discordaria...

Nuno Brilhante Pedrosa
Em Chitrè, Panamá.

1 comment:

Tiago Grácio said...

Olá Nuno…

Comecei a ler o teu blog há cerca de dois meses atrás. Em 60 dias percorri os 21296 km e 401 dias desta tua aventura pela Pan Americana. Deve estar a ser uma experiência inesquecível, ir pedalando por paisagens simplesmente maravilhosas e conhecendo pessoas igualmente belas.
Tens aqui mais um companheiro de viagem, que seguirá todas as tuas pedaladas até ao extremo sul do continente Americano.

Continuação de uma boa viagem e força para a zona dos Andes ;)

Tiago Grácio