3.16.2007

Yucatan e o mundo Maia (Mexico)

Dia 228
km 14084

Chegamos a cobá ao final da tarde. Numa pequena loja da aldeia Maia compramos os ingredientes que faltavam para a grande ceia: ovos, cebolas, batatas, e outras cenas a uma senhora que com um certo ar apático, mostrava algumas dificuldades em somar os preços da mercearia, falava numa das línguas Maias com uma jovem rapariga que me mostrou o total na calculadora: 64 pesos. Pagamos e pedalamos pela aldeia em busca de um local para acampar. O local ideal parecia ser junto ao lago perto da entrada das ruínas de cobá, mas como não tínhamos intenções de partilhar o jantar com os crocodilos que o habitavam, optamos pelo relvado do campo de futebol da aldeia.

Durante o dia, enquanto o bacalhau salgado vindo da Europa, de-molhava dentro de um garrafão de água colocado no cesto da "burra Mexicana" da Joana com o sol intenso e os buracos da estrada a acelerarem o processo de demolha, debatia-mos como o iríamos preparar. Bacalhau á Brás. Sim, já não me lembrava a ultima vez que o tinha comido, e a ver pelo estado das postas depois de 40 km de viagem aos solavancos, era a melhor opção.

A Joana usava as bancadas do campo como cozinha enquanto eu montava a casa perto de uma das balizas. Por momentos os meus olhos focaram a floresta densa do outro lado do campo, e o meu pensamento penetrou a selva ate á praça principal de rituais rodeada por varias arvores Ceiba, da outrora grande cidade Maia a menos de um quilometro dali. Os Maias acreditavam que o céu, a superfície da terra e o mundo misterioso por debaixo dela (chamado Xibalbá) eram uma estrutura única universal e unificada. Do centro dela transcendia a "arbole del mundo", a primeira forma de vida a surgir do caos da criação cósmica.

Os Maias frequentemente associavam essa arvore á Ceiba, que é bastante comum por toda a região. Uma característica da Ceiba, é que os ramos crescem perpendiculares ao tronco criando formas tipo crucifixo. Com a chegada dos missionários espanhóis que obrigaram os nativos a venerar a cruz, aos olhos dos Maias o símbolo cristão ficou associado á "arvore do mundo". Essa associação ainda hoje é observada.

O jantar dessa noite seria o primeiro de vários festins de gastronomia portuguesa cozinhados em território Maia. A Joana trouxe nos seus dois alforjes não só uma incrível vontade de viajar em bicicleta, mas também algumas cenas que eu necessitava, como 2 pneus Schwalbe Marathon, mapas e guias para a América central, literatura em português, e também alguns ingredientes para saciar as minhas saudades da gastronomia Lusitânia, como chouriços caseiros, bacalhau, azeite entre outras cenas.

Três dias antes, quando a fui esperar ao aeroporto de Cancun, tinha os pensamentos cheios de duvidas. Como se iria adaptar á bicicleta que lhe comprei, ao calor húmido, ao trafico das estradas Mexicanas, ao campismo ao acaso? E nos como companheiros de viagem? Como iria ser?
Durante a preparação desta aventura, a Joana foi a pessoa que mais suporte me deu e que mais me encorajou fazer-la. O sonho de percorrer todo o continente Americano em bicicleta não era só meu. Era nosso!
Na manha seguinte visitamos as ruínas Maias bem cedo, antes da chegada dos inúmeros autocarros com ar condicionado cheios de turistas vindos dos muitos resorts que se elevam aos céus como gigantescos caixotes de cimento, e que transformam a lindíssima costa do Yucatan, numa gigantesca "Gringolandia" fortificada.
Seguimos viagem.

A burra Mexicana da Joana, uma bicicleta de fabrico nacional, marca Mercúrio, que eu tinha comprado na Playa del Carmen, tinha apenas 18 mudanças de punho, e que nem sempre queriam entrar, pesada, e com suspensão dianteira praticamente inutilizada pelo cesto colocado no guiador, não era a bicicleta de escolha para este tipo de viagem, mas apenas por 1300 pesos (85 Euros) já com extras, não podíamos esperar muito. A Joana jogava com a vantagem de a península do Yucatan ser das únicas partes do México sem montanhas, e com a sua incrível vontade e determinação em pedalar. O resultado foram 500 km em 2 semanas, que para a sua pouca ou nenhuma experiência em ciclismo, foi algo de extraordinário.

Seguimos para o interior da península através de pequenas estradas do campo, afastando-nos da costa dos turistas e do trafico. A península do Yucatan, que incorpora os estados de Quintana Roo, Campeche e Yucatan, esteve isolada do resto do país durante séculos (as estradas começaram a chegar á península apenas no inicio dos anos 60) e toda esta região desenvolveu uma identidade, gastronomia e caráter próprio. Esta região foi o núcleo do mundo Maia e ainda o é!

A maioria das pessoas que por aqui vive é descendente directo dos grandes criadores de impérios do passado, e muitos ainda preservam os costumes dos seus assessores incluindo as línguas, modos de vestir e religião.
Com o aparecimento de um novo império, a "gringolandia" de Cancun e arredores, a paisagem da península tem sofrido fortes alterações. Mas basta afastarmo-nos poucas dezenas de quilometros da costa para encontrar aldeias Maias onde o espanhol ainda é língua secundaria, e as cabanas em madeira com tetos de palha, ainda superam as feitas em cimento. E turistas, em especial em duas rodas, ainda são fonte de curiosidade por parte dos locais, em especial as crianças.

Uma semana depois, já com mais de 350 km pedalados, a Joana não dava sinais de cansaço (antes pelo contrario!) e nem a sua burra mexicana, apesar da sua luta constante com as mudanças que não queriam entrar. De facto, era a minha que me estava a preocupar. Já com cerca de 30 mil quilometros de idade, os traços da velhice estavam a começar a exporem-se e os problemas a acumular, com a cassete e cadeia gastas (10.000 km) algumas mudanças já saltavam, o conta quilometros deixou de funcionar, o pneu de trás rebentou, obrigando-me a usar um dos novos que a Joana me trouxe, e o “Derailleur”, deixou de funcionar depois de passar-mos um dia todo a pedalar á chuva e de atravessar poças d´agua que por vezes submergiam a bicla até ao eixo, já para não mencionar que o suporte da frente se partiu pela terceira vez. E tudo isto num espaço de 72 horas.

Pelo menos há uma peça que não se desgasta: a vontade de continuar a pedalar rumo à terra do fogo....
Com os dias contados para chegar a Cancun, orientamos a nossa rota para Este, iniciando o nosso regresso á costa das caraíbas, passando pela reserva natural da biosfera Sian ka´An (onde o céu começa na língua Maia), 5000 km2 de selva protegida, patrimonio da UNESCO, e habitadas por pumas, jaguares, papa formigas, macacos e muitos outros animais. Entramos na reserva por Chumpón, nos iniciais 50 km de estrada não alcatroada, que mais parecia ter sido construída sobre rocha calcaria cortada, fomos recebidos por chuvões (os primeiros desde que entrei no México), que não pareciam incomodar muito a boa disposição da Joana, mas que nos impossibilitou um contacto mais próximo com a fauna local, excepto o ocasional crocodilo,papagaios, e é claro, os milhares de mosquitos...ou iguanas, que por vezes se proximavam mais do que o desejado

A Seria do Tamisa já regressou ás margens do rio que atravessa a cidade onde vive, e eu fiquei de novo a sós com a minha "burra".
-Já nos vemos, foram as suas ultimas palavras antes de se misturar com os outros turistas na zona de embarque do aeroporto. Entendi bem o que queria dizer e sei que vai estar ao meu lado durante toda a viagem.

De regresso á Playa Del Carmen, debato-me de momento com a próxima pedalada a dar. Nos planos inicias nunca me ocorreu passar pela península do Yucatan, mas uma vez que aqui estou e com Cuba mesmo aqui ao lado...
Tenho um amigo em havana, talvez o deva visitar. Afinal de contas, uma viagem mede-se com encontros com pessoas e amigos e não em quilômetros....

Nuno Brilhante Pedrosa
em Playa Del Carmen, Yucatan México.

4 comments:

António Rebordão said...

Força Nuno! Fiz referência ti no meu blogue - espero que não te importes. Continua a viagem e a partilhar as aventuras e desventuras.

Eu não me posso queixar mas anseio por uma viagem sem voos marcados, sem limitações de tempo e onde possa sentir cada lugar, cada olhar e cada momento como se tivesse todo o tempo do mundo. Bem... ainda sou novo e tenho a semente dentro de mim. Eu destes dias irei dinamizar...

Well... abraços e que a Graça e Boa Fortuna continuem com todos nós

Anonymous said...

não queres companhia aí nas tuas viagens?É que o bichinho curioso dentro de mim está neste momento aos berros!;)
Muito bom!Espero que tenhas uma uma boa viagem e que atinjas os teus objectivos...
ah é verdade, vou adicionar o link do teu blog no meu!Espero que não te importes!*****

Anonymous said...

Grande Nuno!
Desde que soube que estavas nesta pedalada que visito o teu blogue com regularidade e... dou comigo a pensar! No meu dia-a-dia, sair duma rotina, tomar um café num sítio desconhecido ou fazer o caminho para casa por uma rua diferente já é uma grande aventura. E depois penso nessa tua viagem e na sua dimensão! É extraordinário!! Um acto tão simples com um significado tão grande!
Força Nuno!

João Soares said...

Estimado Nuno
Parabéns pela tua iniciativa.Irei adicionar o teu blogue no Dossier que eu tenho sobre Paz e Ambiente e irei divulga-la no BioTerra, ainda hoje!
Um grande abraço e força!!!
Joao Soares