2.27.2007

Do pacifico ás caraibas (Mexico)

Dia 221
Km 13541


Um enorme sinal verde sobre a estrada patrocinado pela Coca-Cola, cujas letras vermelhas se destacavam na paisagem verdejante, indicava a entrada no estado de oaxaca. E se eu fosse um ciclista vindo de outro planeta, estaria desculpado por pensar que o sinal dava as boas vindas ao estado da Coca-Cola. O México é o maior consumidor desse liquido escuro e misterioso, com o maior consumo per capita do mundo.
Os 400 e poucos quilómetros de costa entre Acapulco e Puerto Escondido, conhecida por "costa chica" (costa pequena), não foram dos mais interessantes para ciclismo. A costa é bastante quente e húmida, e os montes circundantes, bastante quentes e secos. O mar e o céu, ambos um azul brilhante quase prateado, pareciam convergir numa linha quase imperceptível, o que me fez lembrar a cotação de Carlos Pellicer, "Província azul, donde es azul el cielo, donde es azul el mar". É fácil de romantizar estas paisagens, mas o escritor mexicano provavelmente passava as horas de calor deitado na sua rede á sombra, e não a pedalar...
A Este de Puerto Escondido situam-se as legendárias praias de Puerto Angel, Mazunte e Zipolite. Pequenas baias separadas por braços de terra, que tem vindo a crescer em popularidade com turistas independentes, a quem eu chamo de turistas de pé descalço, e que preferem fugir aos resorts-cimento característicos da costa central do pacifico, e alojarem-se em praias um pouco mais autenticas.

Alojamento é com famílias, em cabanas junto ao mar ou em simples pousadas, mas muitos preferem apenas pendurar as suas redes para dormir. As condições apesar de básicas são acolhedoras. A "mota" circula livremente espalhando o seu aroma pelas praias, e em zipolite ate há a ocasional festa de "punchi punchi", na areia ate ao amanhecer. Punchi punchi, é a designação dada por alguns mexicanos á musica tecno. Eu escolhi a praia de Mazunte para relaxar uns dias da dureza das estradas, por ter uma atmosfera mais familiar. Para alem de um interessante centro de pesquisa sobre tartarugas, que escolhem esta parte da costa para desovar, outras actividades são; juntar-se aos pelicanos nuns mergulhos nas águas do pacifico, dormir uma "siesta" na rede, comer, beber umas coronas, ler um livro, pentear a areia, adorar o sol, beber mais umas coronas. Enfim, há actividades suficientes para manter uma pessoa entretida durante uma semana. Muitos chegam e já não partem, e a pequena comunidade de estrangeiros residentes tem vindo a aumentar.

4 dias depois segui viagem...
Ao chegar a Salina Cruz o vento forte característico desta zona, intensificou-se. Aí iria abandonar o pacifico a caminho de Cancun nas Caraíbas, e tinha duas opções: Ou directamente para norte através do Isthmus de Tehuantepec, a parte mais estreita do México, com cerca de 200 km de mar a mar, através de uma "falha" na cadeia de montanhas que atravessa todo o México de norte a sul, mas que apesar de-segundo os locais- ser relativamente plano o vento por vezes derruba Camiões. Ou seguir para nordeste para as montanhas de Chiapas ate Tuxtla. O vento forte que se fazia sentir nesse dia ajudou-me a decidir e optei pelas montanhas.
Já era noite escura quando entrei no centro da cidade de Cintalapa e procurei o "Zocálo", ou praça principal. Um pouco á semelhança da península ibérica, no México, as aldeias e cidades estão centradas em redor de uma praça cheia de sombra e de uma igreja ou catedral. O Zocalo estava cheio de pessoas e actividade. Dou conta de alguém a correr ao lado da bicicleta e a gritar.
-"habla ingles?".
-I´m a cyclist too!!

O John, do pais de Gales, era o primeiro ciclista, que encontrava no México continental ate ao momento. Alojei-me no mesmo hotel que ele, e no dia seguinte viajamos juntos ate Tuxtla Gutiérrez. Ao jantar, na esplanada de um "comedor" do zocálo, partilhamos impressões das nossas viagens. O John começou a pedalar na cidade do México, e vai ate Lima no Peru. Não tardou muito para fazer-mos a pergunta que ambos ansiávamos fazer:
-E o Darien? Vai tentar atravessar-lo?
O mito do Darien, uma zona fronteiriça entre o Panamá e a Colômbia de selva densa e quase impenetrável, cresceu em redor de historias de contrabando de drogas, guerrilhas, emigração ilegal, Terra de ninguém e sem lei, mas tambem uma barreira natural que separa as duas americas que protege a incrível biodiversidade existente e as comunidades indígenas que por lá vivem. O chamado "darien gap" tem cativado aventureiros em todas as formas de transporte durante décadas, principalmente porque esses escassos cem quilómetros, impossibilitam a estrada pan-americana de ser coroada como a estrada mais longa do planeta.
Decidimos manter o contacto. ainda faltam vários países, mas nunca se sabe...

Impossibilitado de chegar a Cancun em bicicleta antes do dia 27 de Fevereiro, altura em que chega a Joana Oliveira de Leiria, nas suas ferias/ciclismo de 2 semanas, não tive outra alternativa senão quebrar um dos princípios desta viagem, o de não utilizar transportes motorizados,excepto em situações sem alternativa (como foi o caso da travessia em barco do mar de cortes). Foi bastante estranho ver a paisagem a passar com tão rápido, dentro de um compartimento de latão e vidro. Os pássaros e as ramas das arvores nem se conseguiam focar. Desapareciam tão rápido como apareciam. E onde estavam os gritos das crianças ou o cantar dos pássaros ou o ladrar dos cães que muitas vezes me perseguiam? Os únicos sons que ouvia vinham do écran sobre a minha cabeça, a passar filmes de acção, misturados com os sons da musica ranchera, que o condutor ouvia a bom e alto som.

E o cheiro das flores? E as pessoas na berma da estrada? Não via os seu sorrisos na cara, não lhes podia dizer olá, olhar-los nos olhos, ou cumprimentá-los e sentir a dureza das suas mãos firmes. Observava com atenção as subidas e descidas, curvas e contra curvas, mas não as sentia. Sentia era remorsos. E pior fiquei quando vi, através do vidro do autocarro, o John. Eram duas da tarde, estava deitado sobre umas rochas ao lado da estrada, com o chapéu sobre a cara e a tirar uma "siesta" no topo de uma subida. As pessoas em meu redor comentavam:
- Tá loco, ali tirado en el sol, lo Gringo!
Com certeza que eu próprio, já recebi centenas de comentários como este, mas trocava o ar condicionado do autocarro e tudo o que me rodeava, para estar ali ao seu lado. Foi uma viagem agonizante, mas só fortaleceu a minha convicção de que não há outra forma de transporte melhor para viajar do que a bicicleta, aquele animal de tracção onde a besta puxa sentada, como um tio meu uma vez me disse.
Cheguei a Playa del carmen, 70 km a sul de Cancun, com o amanhecer do dia. Playa del carmen, a cidade praia com o maior índice de desenvolvimento turístico no México, é mais uma estância balnear com todas as facilidades para o turista, como tantas outras que existem espalhadas por ambas costas mexicanas. E apesar de ter uma atmosfera mais relaxada do que Cancun, há que sair daqui o mais rápido possível. Já visitei suficientes locais como este, onde a cultura mexicana é ofuscada pelas comodidades exigidas pelos turistas ocidentais, e nao foi para visitar locais destes que eu decidi fazer esta viagem em duas rodas. E assim que a Joana chegar, partiremos para duas semanas de ciclismo de lazer e relaxado pela península do Yucatan.

será apenas depois do Yucatan que irei condimentar a minha passagem pelo México com um pouco mais de aventura, subindo finalmente as montanhas da sierra madre sur, no estado de Chiapas, território zapatista, onde espero sair do circuito turístico e possivelmente fazer algumas etapas "off road". Mas primeiro irei pedalar ate á cidade onde apanhei o autocarro, quanto mais não seja, por descargo de consciência...

Nuno Brilhante Pedrosa
em Playa del Carmen, Qintana Roo, Mexico

2.07.2007

Pela "Carretera costera" do Pacifico (Mexico)

Dia 191
Km 12529


O Sinaloa Star atracou no porto de Mazatlan ao lado de um navio de cruzeiros, pelas 10.30 da manha.
Foi a bordo de um desses navios, o famoso "down princess", que eu tinha chegado a Mazatlan, na primeira das minhas quatro visitas ao mexico.
Mas desta vez iria ser diferente.
Fui um dos primeiros a desembarcar. Montei na burra e galopei para o centro da cidade em busca de um hotel. Em 15 anos a cidade tinha mudado tanto que estava irreconhecível aos meus olhos.

A única parte da cidade que consegui identificar foi o "malecòn", ou passeio junto ao mar, e o "zocàlo" ou praça principal com a catedral espanhola e as suas duas torres amarelas. Estavam 27 graus, apenas 2 ou 3 graus a mais do que em La Paz, mas a humidade era elevada.
Passei 5 dias na cidade, alem de dar uma revisão geral ao meu equipamento e retirar a poeira do deserto pouco mais fiz...
Ao 5 dia sai da cidade pouco depois do amanhecer. A paisagem que me rodeava era completamente diferente da "Baja", parecia outro pais. Os cactos deram lugar a arvores de manga e abacate, e o deserto árido de há poucos dias atrás, transformou-se em florestas húmidas verdes e tropicais. Os ranchos com algumas vacas magras que na "Baja" se avistavam de longe em longe, aqui estão rodeados de plantações de milho, melancias, papaias e outros frutos e vegetais. E há gente, e aldeias e trafico por todo o lado. A água e abundante com rios e lagos.
Tinha entrado "oficialmente" nos trópicos...

Em Escuinapa de Hidalgo a "carretera de cota", designação dada a uma auto-estrada mexicana, que è mais uma via rápida com portagens (não para ciclistas!) e boas bermas, terminou, e durante vários quilòmetros tive que pedalar pela "La federal", cujo trafico intenso e bermas quase inexistentes, era de arrepiar os cabelos atè ao ciclista mais experimentado. Entre Escuinapa e Ruiz, havia um troço de auto-estrada em construção, que segundo alguém com quem falei, era transitável para ciclistas.
Pela primeira vez na viagem tive, não uma estrada, mas sim uma auto-estrada só para mim. Um pavimento liso com cerca de 30 metros de largura, km após km, sem trafico!!. A super-estrada cortava por paisagens tropicais, com lagos cheios de pássaros, incluindo os "spoonbill", um pássaro rosado semelhante ao flamingo, e alguns campos agrícolas e pequenas aldeias ainda não transformadas pelo impacto da nova via rápida.

Era bom demais para ser verdade, estava tão feliz que ate fazia malabarismos com a bicicleta, tipo andar sem mãos, etc. Sabia que era um momento único na viagem e estava a usufruir de cada km pedalado. Mas não estava sozinho. Apesar do pavimento estar completo, ainda havia vários grupos de trabalhadores ao longo do caminho a tratar dos acabamentos finais.
A minha sorte estava para mudar radicalmente.
Numa ponte não acabada, não vi uma pequena falha com pouco mais de 30 cm, o impacto da roda e o peso das malas quebraram o suporte dianteiro. primeiro o esquerdo, torcendo a vara que os une por debaixo da roda, obrigando o do lado direito a partir em 2 lados.
ficou feito num oito...literalmente!

foi-me impossível encontrar um suporte em Portugal, como vou encontrar um no México? Ou quem me o vai soldar, uma vez que è feito de alumínio? e como e que eu vou sair daqui?
Nos preparativos desta viagem, um pouco à pressa, tinha passado uma tarde em Lisboa à procura de um suporte dianteiro sem sucesso. Foi já em Seattle nos estados unidos, quando em transito para o Ártico , enquanto esperava pela bicicleta que se tinha "perdido" no vôo vindo de Londres, que encontrei um suporte e umas malas dianteiras,
Caiu a noite, e o Céu enublado transformou a noite num preto quase sólido. Não se via vivalma e o chilrear da passarada era ensurdecedor, como que a protestar a minha intrusão. ao lado da super-estrada estava uma arvore, semi coberta com silvados e plantas trepadeiras, e que me pareceu o lugar ideal para monta a rede. ( a minha rede esta a tornar-se numa das peças de equipamento que mais valorizo) encostei a bicicleta à arvore e não lhe toquei mais nessa noite...estava meio enfuriado pelos acontecimentos do final de dia e nem queria averiguar os estragos feitos. Pelo menos vou fazer um bom jantar, pensei.
Tinha comprado comida em Mazatlan, e comecei a preparar um refogado de cebola alho azeite, folhas de louro e chiles. ao qual esperava adicionar molho de tomate e vegetais, e mais tarde um pacote de pasta.. Monto o fogão e dou umas 10 a 15 bombadas para criar pressão na botija de gasolina. Acendo um cigarro e o fogão ao mesmo tempo como já era ritual. De repente o fogão entra em chamas. Entrei meio em pânico, sem saber bem o que fazer. soltei a patilha de segurança e separei o fogão da garrafa de gasolina dando-lhe um chuto com a bota. enterrei as mãos na terra e comecei a combater as chamas.
Boa! sem suporte e agora sem jantar.
Tudo o que tinha comprado não era comestível sem ser cozinhado. Tinha feito 150 km e essa noite o meu jantar foi uma banana e um pacote de bolachas com muita água. Só falta cair-me uma tarântula durante a noite, pensei. não dormi bem essa noite.

Mas que raio estou eu a fazer aqui, a dormir nesta rede, debaixo desta arvore estranha, no meio dos trópicos, do nada, e com uma bicicleta como meio de transporte?? Porque não faço como toda a gente, e viajo de carro? Ou de avião? A minha mãe sempre me disse que eu era do contra. Talvez tenha razão!
Mas julgo que seis meses depois, estou mais receptivo a dificuldades, estou mais aberto, mais eu próprio. È essa a cena de viajar em bicicleta, è como retirar uma camada de pele a mim mesmo, expondo a carne e expondo-me a mim próprio ao mundo, para que ele se exponha a mim. Na manha seguinte desmonto a rede, retiro os painéis do suporte danificado e coloco as malas dianteiras, uma em cada lado do guiador. A auto-estrada não estava assinalada no meu mapa e não tinha a certeza de onde estava. pensei que, se cortasse para a esquerda no próximo caminho que encontra-se, mais tarde ou mais cedo iria ter à estrada principal, que deveria ser mais ou menos paralela. tinha feito apenas 2 km quando tive um furo. uma das muitas pedras do caminho tinha feito um pequeno corte no pneu. ainda devia trazer comigo alguma energia ou Zen só favorável aos desertos e era necessário adaptar-me com rapidez aos trópicos. A continuar com este azar não ia conseguir chegar a Cancun a tempo de receber a Sereia do Tamisa.

30 km depois, esfomeado, fiz a minha entrada triunfante na cidade de Acaponeta. E o primeiro restaurante que vi, entrei, esperando ansioso que a dona me servisse. Tirei a barriga de misérias com um jantar/pequeno almoço avantajado. comecei com uns ovos mexidos com chouriço picado e chilles e um cesto de tortilhas e um café. Seguido de um bisteck a la rancheira (uma espécie de guisado de carne) e mais um cesto de tortilhas. muitos pratos mexicanos, especialmente nos restaurantes de rua, são servidos apenas com uma colher e acompanhados por um cesto de tortilhas. Com a tortilha na palma da mão, usando a colher, põe-se um pouco de tudo, cerrando primeiro a metade, depois com o dedo indicador, numa das pontas, deixando escorrer o molho primeiro, e volta-se a dobrar mais uma vez. o resultado è uma refeição de consecutivas sandes de tortilha, que requer certa pratica e tempo de aperfeiçoamento. Essa manha não havia tempo! Comi o bisteck à colherada e com a outra mão ia molhando as tortilhas no molho. Pedi mais um cesto de tortillas e pouco depois mais um bisteck e outro café, acompanhado por um "pay queso" (torta de queijo).
A baguete, para desapontamento dos franceses, não è o pão mais comido no mundo. De facto è a tortilha, cujo nome vai mudando com o girar do globo, chapati na índia, pita no médio oriente, etc, etc. Na sociedade mexicana a tortilha tem tanta importância que chega a ser objecto de campanha política. De momento Filipe calderon esta em apuros com a promessa de manter o preço da tortilha abaixo dos 8.5 pesos o kilo.(€0.60/kg)

Depois de muitas voltas pela cidade, encontrei uma oficina que garantiu-me Juarez, o dono, era a única oficina nas redondezas que soldava alumínio. Bueno, faz o que puderes, disse-lhe, mostrando as varias partes do suporte partido e explicando como era a forma original. 7 horas depois mostrou-me a reconstrução, que de facto parecia ser mais forte do que a anterior. Passei a noite na cidade e no dia seguinte voltei à "minha" auto-estrada, para pedalar mais 80 km em paz. Ate que um grupo de trabalhadores me mandou parar. um deles disse: no hay paso! um outro jovem aproxima-se e pergunta se eu sou o ciclista que vem do ártico. A ultima vez que tinha dito a alguem o local de origem desta viagem foi em Mazatlan, a 250 km atrás. As noticias espalham-se como fogo selvagem.
Fiz no total 130 km na "minha" auto-estrada privada.
De regresso a EN200 (ou pan americana), conhecida apenas por "la federal",a realidade foi outra.

A EN200 è a única estrada que bordeia o pacifico, e o trafico varia entre, perigosamente intenso,atè quase inexistente, como è o caso do troço de 250 km no lindíssimo estado de Michoacan, onde a EN200 mais parece uma estrada rural, sem trafico e cheia de buracos... Nesta segunda etapa no México, nos 1500 km que separam Mazatlan de Acapulco, a "carretera costera" levou-me pelos extremos da "cultura de praia", desde mega-resorts, onde os hospedes pagam atè 1000 euros por noite e transitam entre o aeroporto e o hotel em helicóptero, a zonas de turismo mais convencional, e a pequenas praias de surfistas ou a praias com ambiente de viajantes "hippies" ao bom estilo de goa, kopangan ou dahab.
Por entre praias de mega resorts e gettos de surfistas, existem aldeias Mexicanas cujo estilo de vida se enquadra com o clima quente e hùmido da costa do pacifico. A siesta ainda è respeitada pela maioria, e atè das casas mais pobres, o som ensurdecedor da "musica ranchera" preenche o ar com uma alegria quase nostálgica. Sendo uma zona tropical hùmida, os encontros com a fauna local são inevitáveis.

Foi o que aconteceu no dia 183. Tinha montado a rede, mais uma vez, debaixo de uma arvore. Depois do pequeno almoço inicio o meu ritual diário de empacotamento, quando deparo com um escorpião aninhado no lado de fora de uma das malas. Não o matei, pois era eu que me estava a intrometer no seu território e não o reves. Como encontros com aracnídeos não è algo que uma pessoa nutra com facilidade, durante a manha o tema central dos meus pensamentos pedalantes foi o escorpião. E se houvesse outro? Se calhar andam aos pares. Sei lá! Os seus hábitos são-me completamente alheios. Talvez tenha entrado para dentro de uma das malas, ou por debaixo do selim!
Essa idéia pôs inrequieto, pedalava com tal desconforto, que parei a bicicleta. Inspecionei as malas, rasguei uma folha do meu guia pus-lhe fogo e passei-a por debaixo do selim. A burra era minha, e desta vez, era o escorpião que invadia o meu território. Tinha que matar-lo. Afastar-lo dos meus pensamentos.
Segui a minha migração em duas rodas rumo ao sul.

Nssa mesma tarde vejo uma tarântula a atravessar a estrada.
E para quem nao tem a noçao do tamanho do bicho, tirem como referencia a tampa da coca-cola

Dias depois dos meus varios encontros com a fauna local, chego a praia de Ixtapa. Ixpata è uma daquelas praias resort, onde existem todas as facilidades para o turista. Praias idílicas, hotéis 5 estrelas, restaurantes italianos ou de sushi japonês, e para os gringos que tenham saudades de casa, Mac Donalds, starbucks e subways...È o que eu gosto de chamar; turismo em prisões no estrangeiro, e que tento evitar a todo o custo.
Ate ao inicio da década de 70, Ixtapa não era mais do que uma plantação de coqueiros, e Zihuatanejo uma aldeia de pescadores adormecida. Tudo mudou quando a Fonatour (o departamento governamental para o desenvolvimento do turismo) decidiu que a costa do Pacifico necessitava de uma estância turística moderna e mais dinâmica que competisse os complexos turísticos de Acapulco e puerto vallarta. Comprou a plantação de coqueiros, criou as infranstruturas e estendeu a carpete vermelha às cadeias de hotéis de luxos e construtores de condomínios, com casas que passam dos 4 e 5 milhões de dólares.

Mas como tinha lá um contacto, articulado através da Lynn Pilgrim dos EUA, uma forte entusiasta e colaboradora desta aventura, resolvi dar um passeio por là.
A Lourdes era uma mexicana dona de um restaurante italiano, e recebeu-me cordialmente. O que se passou a seguir, foi um pouco surrealista para um ciclista habituado a poeira das estradas. O restaurante/esplanada estava cheio, obviamente de "gringos" milionários. A Lourdes fez questão em me apresentar a todas as mesas, como o ciclista que estava a unir os pòlos em bicicleta. Durante a noite entretive a clientela com as minhas historias de viagem, aproveitando para promover a minha causa: As crianças especiais da APPC Leira. Um casal de gringos, a dar o seu passeio noturno por este oásis de riqueza, parou por momentos escutando-me com entusiasmo. Aceitas donativos, perguntou, assando-me uma nota verde e encrespada para a mão, e seguiu o seu passeio. No final da noite no meu hotel de 100 pesos (7 euros)na praia de Zihuatenajo, 10 km a sul, ponho a mao no bolso e retiro as varias notas que a minha audiência me tinha dado. Uma delas, a encrespada, era de 100 dólares. Nem queria acreditar!!

No dia seguinte, segui viagem. Pedalei todo o dia sobre um sol abrasador que ao meio dia passou a marca dos 40 graus. A t-shirt ensopada colava-se ao corpo, e não a podia tirar porque, nos dias anteriores ao pedalar em tronco nu, queimei o corpo ao ponto de ficar com os ombros cheios de bolhas dágua. Ao final da tarde a "carretera costera" desceu os montes e aproximou-se da costa. De uma das colinas, com o sol a pôr-se sobre a linha que divide o mar do pacifico de um céu avermelhado, avisto uma pequena aldeia de pescadores com meia dúzia de casas feitas em madeira e construídas debaixo da sombra de um coqueiral. Sai da EN200 e entrei pela aldeia, empurrado a bicicleta pelo caminho arenoso ate a praia. Perguntei ao Juan, um pescador, se podia acampar na praia. No hay problema, amigo, respondeu.
Montei a tenda e comecei a cozinhar. Mais tarde vejo o vulto de varias pessoas a aproximarem-se. Era Juan, a sua esposa e os seus 4 filhos. Sentaram-se todos na areia em redor do meu fogão. Partilhei o meu jantar com os filhos uma vez que os pais não aceitaram. Hoje não precisava contar historias para cativar a minha audiência. Bastava que eles me observassem, e para mim, bastava-me a sua presença.

Na manha seguinte acordei com o amanhecer e decidido a chegar a Acapulco. Bati um novo Recorde nesta viagem, com 154 km pedalados em 9.04h, subindo uma das varias encostas que rodeiam a baia de Acapulco, já depois do por do sol.
Acapulco tem uma vibração quase palpável. Trafico caótico, poluição, uma baia lindíssima, turística, violenta, mas com praças cheias de sombra, calmas e serenas. E uma vida noturna, que dizem ser das melhores de toda a costa do Pacifico.
Restam-me apenas maís 400 km pela "carretera costera" atè porto Escondido, o ponto mais a sul, desta minha passagem pelo México. Ai abandonarei o Pacifico, para não o voltar a ver, provavelmente ate El Salvador, e começarei a árdua subida para nordeste, pela cordilheira Sierra Madre Sur, através dos estados de Oxaca e Chiapas, habitados por grupos indígenas, descendentes dos Maias e Astecas.
Nos próximos meses, ate chegar a Colômbia, o meu itinerário será um "zig-zag" por entre as costas do mar das caraíbas e o pacifico, e esta todo ele ainda por definir...


Nuno Brilhante Pedrosa
em Acapulco, México